TECNOLOGIA

A seleção argentina foi vítima da Inteligência Artificial na Copa do Qatar?

29/11/2022 10:00:00

Artigo por Carlos José Pereira, empresário do setor de TI e Diretor do Seprosc

A seleção argentina foi vítima da Inteligência Artificial na Copa do Qatar?

Por Carlos José Pereira
Empresário do setor de TI e Diretor do Seprosc

 

A FIFA inova na Copa 2022: computador auxilia o VAR nas decisões sobre impedimento
O problema é de interpretação e não de complexidade da regra


A regra do impedimento é uma das mais complexas do futebol. Saber se um jogador está ou não impedido envolve muitas variáveis.

As discussões acaloradas de comentaristas de futebol, e torcedores, após a aplicação da regra do impedimento pelo juiz, em alguns casos, não se compatibilizam com a famosa afirmação de Arnaldo Cezar Coelho, de que a “A regra é clara”. 

Se a regra é clara, o problema se desloca para a interpretação dos fatos, da jogada.

Acontece que tanto a regra, quanto os fatos, passam por interpretações, transformando o impedimento — e outras regras do futebol —, em um empreendimento bastante subjetivo e único.
Há uma imbricação de interpretações, nascendo a forma singular de identificação de um impedimento. Talvez nunca se tenha outro exatamente igual.

Juízes e bandeirinhas são vítimas dos pontos cegos. Não veem o que não podem ver e obviamente quaisquer interpretações se baseiam nessa “realidade”. Além disso, estão pressionados, há uma premência, uma urgência para a tomada da decisão.

O impedimento, quando aplicado em lances corriqueiros é natural, mas o impedimento entra em outra dimensão quando envolve a anulação de um gol. O impedimento se transforma num evento decisivo em que há os muito afetados positivamente e os muito afetados negativamente.

Esse “ser interpretador” (1) — juiz ou bandeirinha —, sempre esteve entregue à própria sorte. “Errar é humano” nunca foi algo a ser considerado pelos afetados negativamente, pelas organizações responsáveis por eles e pelos comentaristas de futebol. Malhar o juiz ou bandeirinha, nesses casos, é normal, entendem os que discordam da decisão.

Como evitar, principalmente, erros dos juízes dadas as limitações a que estão submetidos, consideradas todas as variáveis, auxiliando-os e tirando-os do lamaçal em que se encontram?
A FIFA, com seus argumentos — não vem ao caso neste momento —, demorou muito para escalar a tecnologia, colocar a tecnologia em campo. O Vídeo Assistant Referee (VAR) (2), foi um passo importante, e exitoso, na direção da utilização da tecnologia como auxiliar de decisões. 

O VAR se baseia em tecnologias relativamente simples, que permitem que ele observe o que o juiz que está em campo não vê. O VAR faz uma observação que, na teoria cibernética, denomina-se observação de segunda ordem. (3)

Um observador de segunda ordem, como o VAR, vê o observador de primeira ordem, o juiz da partida, em campo, e o que ele juiz observa e o que ele juiz não observa. 

O observador de segunda ordem está numa posição privilegiada. O observador de segunda ordem pode, ele mesmo, tirar conclusões diferentes, fazer interpretações, atribuir causalidades, transformando-se num observador de primeira ordem, com seus próprios pontos cegos. O observador de segunda ordem também não vê o que não vê. 

A introdução do VAR foi uma medida ótima adotada pela FIFA. O VAR alivia o fardo extremamente pesado que carrega um juiz do jogo, nas decisões críticas, principalmente envolvendo gols.
Uma primeira questão, a ser fortemente considerada, é que o problema de interpretação continua. Há o deslocamento do problema para outro nível, para o VAR. O VAR é um “ser interpretador”.

A segunda questão, é que o VAR tem uma grande responsabilidade, ele também carrega seu fardo. Ele não está isento de influências, de pontos cegos e, em alguns lances, fica difícil apertar um simples botão, assim como é difícil para um bandeirinha levantar o braço em determinados casos. Ao final, lances duvidosos continuam existindo.

Seres humanos interpretam e cometem erros. Qualquer ser humano se sente pressionado diante de uma decisão considerada importante, e premente, e avaliações ficam comprometidas.

Um juiz que anula um gol, por quaisquer motivos, principalmente quando esse gol foi conferido por um jogador famoso, de um time considerado favorito, que joga com outro time que “deveria perder”, coloca-se numa situação delicada. Em uma copa do mundo o problema é muito maior.

Mas tudo pode ser pior nesse mundo. Imagine um juiz tendo que anular um, dois, três gols em seguida, do mesmo time. Cada anulação seguinte pesa mais. A cada gol seguinte anulado, se houver uma pequena dúvida, por menor que seja, para o juiz ela ganha proporções enormes e serve de válvula de escape, de alívio da pressão. Ele sempre poderá se apegar a esse detalhe e se justificar diante dos críticos.

Um juiz humano fará um esforço, sobre-humano, para anular gols em seguida de um time famoso, favorito, com jogadores também famosos, que tem como adversário um time que a opinião pública entende que deva perder — às vezes até mesmo alguns torcedores daquele time têm dúvidas de um possível resultado exitoso.

Ao longo dos anos, jogadores e técnicos, aprenderam a explorar essas deficiências dos juízes, suas inseguranças, e “partem para cima do juiz”, que embora não sejam válidas para uma decisão já tomada, servem de pressão para futuras decisões.

Mas então vem a FIFA com uma novidade na Copa do Qatar 2022.

O que muda com a introdução do computador, propiciada por novos algoritmos viabilizados com o uso de Inteligência Artificial? Não é apenas um terceiro nível de interpretação? 

A novidade, na Copa do Qatar 2022, é a introdução de um auxiliar diferenciado para a tomada de decisões nos casos de impedimento. 

A FIFA coloca um computador no processo que auxilia o VAR na determinação de uma situação de impedimento. 

O computador, um “ser” frio e calculista que “não interpreta”. 

Algoritmo não tem emoções, não torce para nenhum time, não sabe se o time é favorito ou não, não tem salário, não sustenta família e está “pouco se lixando” para a torcida, para os técnicos e para sua própria imagem.

Esse “ser” é apenas uma fórmula matemática. Se o resultado da fórmula for um impedimento, que seja dado… nem se pode falar em: doa a quem doer…

A resposta à pergunta: “Não é apenas um terceiro nível de interpretação?”, não é tão simples de responder, de pronto. .

Eu afirmei antes que computador não interpreta, mas a introdução do computador, como auxiliar do VAR, carece de reflexões importantes.

Os algoritmos de aprendizado de máquina, certamente utilizados como parte desse processo de construção de um auxiliar diferenciado para o VAR, são responsáveis pela viabilidade da solução, pois sem eles, seria muito difícil o computador ser introduzido dessa forma.

A FIFA, ao disponibilizar o computador, é responsável também pela construção de todos os algoritmos envolvidos e o resultado que deles emanam. Assim o que o computador faz ou “decide” é o que a FIFA determinou.

Então, embora o computador não interprete, ele aprendeu com quem interpreta e obviamente vai ter uma forma de decidir, determinada pela FIFA. 

É importante salientar esse ponto: o algoritmo vai decidir de acordo com preceitos da FIFA e neste sentido se transforma em um ser “ser interpretador”: segue instruções da FIFA à risca.

A interpretação da FIFA pode ser diferente da interpretação de alguns juízes. Essa talvez seja a maior inovação com a introdução do computador.

O lado positivo desta questão, de o computador não interpretar, é que ele não vai mudar de opinião de jogo para jogo. 

A interpretação da FIFA pode ser diferente da interpretação de alguns juízes. Essa talvez seja a maior inovação com a introdução dos algoritmos de Inteligência Artificial.

A partir dessa tecnologia, se ela for aprovada e se estabelecer, quando for utilizada em todos os jogos, o computador passa a analisar os lances de impedimento com “uma única interpretação”, aquela dada pela FIFA, quando ensinou esses algoritmos. Há uma uniformização das decisões.

Em outras palavras, o lado positivo desta questão, de o computador não interpretar, é que ele não vai mudar de opinião de jogo para jogo — talvez seja ensinado após a Copa, com eventuais situações que nunca tenha visto. 

É como se um único juiz apitasse todos os jogos. Pode-se até reclamar da interpretação do computador, mas será igual para a seleção brasileira, argentina, canadense ou francesa. Enfim, para todas as seleções da Copa. Nenhuma delas poderá afirmar que foi prejudicada pela “interpretação da regra”, de um ou outro juiz.

A FIFA sempre se esforçou para unificar as interpretações das regras e a aplicação delas, tudo em vão. Finalmente talvez, essa nova tecnologia, seja o embrião para essa unificação nas partidas importantes num primeiro momento.

Apesar dos esforços de unificação, realizado pela FIFA, antes do computador, ainda assim cada juiz, em cada partida, bem como os juízes de vídeo, interpretava à sua maneira, ainda que tivesse sido orientado em sentido diferente.

Claro que se dissemina entre os juízes uma certa “jurisprudência” a respeito das questões de arbitragem, mas que não precisa ser respeitada e se transforma em mais um argumento contra a frase de que “a regra é clara”.  “[…] como acontece com as outras regras do jogo, sua aplicação depende do conhecimento das práticas de arbitragem que se foram construindo ao longo da história deste esporte, numa espécie de ‘jurisprudência’ que foi sendo incorporada na forma de aperfeiçoamento da[sic] regras.”(4)

A seleção argentina não percebeu uma mudança crucial? O técnico da seleção saudita percebeu e arriscou?

O presidente da Fifa, Gianni Infantino, afirmou que a FIFA deu o passo corajoso, ao utilizar a tecnologia VAR no maior palco do mundo e provou ser um sucesso indiscutível. E diz que a tecnologia de impedimento semiautomático é uma evolução dos sistemas VAR que foram implementados em todo o mundo. (5)

As seleções foram informadas sobre essa inovação e cabia a elas se adaptar a esse novo processo, mas talvez uma seleção, considerada favorita, não pensasse no impacto que essa nova tecnologia iria ter. Mas um técnico inteligente, de uma seleção desacreditada, que deve se agarrar a qualquer detalhe para não perder, pensou em se aproveitar dela. 

Alguém pode perguntar: “Mas ainda assim não é o VAR que determina se deve ou não chamar o juiz, ainda que o computador aponte um impedimento?”

A resposta é sim, mas se deve pensar o seguinte: se o computador indicou que há impedimento, o braço do VAR fica mais leve.

O VAR se sente amparado e não é mais culpa dele se o juiz principal ignorar o alerta, analisar as imagens, e interpretar diferente.

O juiz principal, ao saber do alerta do computador, vai pensar duas vezes antes de contradizê-lo. Que xinguem o algoritmo.   

Por tudo que foi dito até aqui, arrisco-me em afirmar se não existisse essa nova tecnologia, a seleção argentina não teria tantos gols anulados. Os braços de bandeirinhas e juízes ficariam muito pesados, para levantar uma bandeira, apertar um botão ou para levar um apito à boca.

SOBRE A TECNOLOGIA 

O computador como auxiliar de juízes, em regras complexas como a do impedimento, com uma infinidade de variáveis, somente é possível com a utilização da Inteligência Artificial em diversas fases do processo; não é possível somente com algoritmos tradicionais de programação de computadores.

Se essa tecnologia for aprovada, os algoritmos poderão ser utilizados para outras regras do futebol, como as penalidades máximas.

Entendo, que no futuro, veremos computadores interferindo positivamente nas partidas, no sentido de oferecem decisões uniformes para problemas semelhantes.

A nova tecnologia usa 12 câmeras para rastrear a bola e até 29 pontos de dados de cada jogador individual, 50 vezes por segundo, calculando sua posição exata no campo.

Os 29 pontos de dados coletados incluem todos os membros e extremidades relevantes para a marcação de impedimento.

A bola oficial da copa do Qatar, tem um sensor dentro dela, um dos elementos fundamentais para a detecção impedimento. Este sensor envia os dados da bola para a sala de operações de vídeo 500 vezes por segundo, permitindo uma detecção muito precisa do ponto do chute. (6)

O algoritmo com base nesses dados e no que aprendeu, alerta o VAR.

Todo o processo é muito mais ágil, ocorre em poucos segundos. Decisões de impedimento podem ser tomadas com mais rapidez e precisão.


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(1) Esse termo, “ser interpretador”, utilize para qualquer ser humano, ou equipe de seres humanos, que interprete situações, fatos, para a tomada de decisões.

(2) AMADO, Aécio. Entenda o que é o VAR, sistema que orienta árbitros por vídeo. Disponível em: agenciabrasil.ebc.com.br. Acesso em: nov. 2022.

(3) LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade; tradução: Saulo Krieger; tradução das citações em latim: Alexandre Agnolon. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 20-21. [Nota de rodapé 15]

(4) Impedimento (futebol). Disponível em: pt.wikipedia.org. Acesso em: nov. 2022.

(5) Semi-automated offside technology to be used at FIFA World Cup 2022. Disponível em: www.fifa.com/. Acesso em: nov. 2022.

(6) Ibidem