TECNOLOGIA

Como alguém pode saber e não saber que sabe?

27/02/2023 19:00:00

Artigo por Carlos José Pereira, empresário do setor de TI

Como alguém pode saber e não saber que sabe?

Por Carlos José Pereira
Empresário do setor de TI, diretor presidente da Fácil

 

Dialogando com fórmulas matemáticas: manipulação de símbolos e não de sentido

A área de tecnologia sempre nos brinda com novidades, inovações. Mas fazia algum tempo que não aparecia algo que chamasse tanto a atenção quanto uma nova plataforma que se utiliza de Inteligência Artificial (IA), criada pela empresa OpenAI: a plataforma denominada ChatGPT. [1] Baseia-se em linguagem natural, treinada a partir de grandes quantidades de dados disponíveis na internet.

Produtos utilizando IA são lançados em profusão no mundo. A Fácil, de Blumenau, especializada em produtos para a área jurídica, utiliza a IA com muito sucesso e acaba de lançar mais uma novidade. [2] Muitas outras plataformas se utilizam de técnicas de aprendizado de máquina para individualizar relacionamentos com seus públicos. Às vezes você nem sabe, mas está sendo influenciado por um algoritmo de “machine learning”.

Em 2021, mais de 150 bilhões de dólares foram investidos em tecnologia de IA. Isso diz tudo a respeito do que se pode esperar nos próximos anos. [3]

Por que a plataforma ChatGPT recebeu uma atenção diferenciada?

Percebe-se uma disputa bilionária entre a Microsoft, que integra uma versão aperfeiçoada dos algoritmos utilizados pelo ChatGPT em sua plataforma de busca Bing, [4] e a Google, que lança seus próprios algoritmos em uma plataforma denominada Bard. Como afirma Christopher Mims, o desejo dessas empresas é se enraizarem ainda mais em nossas vidas. [5] Como se já não estivéssemos encalacrados, pois já não se vive sem algumas dessas tecnologias.

Como afirma Luhmann, não é que a técnica domina a sociedade como um poder anônimo, mas que, ao se envolver com ela, a própria sociedade se torna dependente da técnica de uma forma que não é racionalmente planejada. [6]

Eu comecei a brincar com essa plataforma ChatGPT logo que ouvi falar dela e fiquei encantado. Sou da área de tecnologia da informação, e dado o meu histórico, vi ali algo diferenciado que irá ascender e transformar as sociedades, como outras tecnologias disruptivas fizeram no passado.

Tudo é ainda um pouco embrionário e a utilização maciça revelará a necessidade de ajustes. Mas se tem algo muito diferenciado sobre o qual se pode trabalhar e aperfeiçoar. Novos produtos, com essa técnica, já não podem ser testados somente nos laboratórios das empresas ou com um público muito limitado, eles têm de passar pelo teste das ruas.

Não quero repetir o que já está amplamente divulgado, chover no molhado. Mas entendo que há algo muito novo no âmbito da tecnologia de Inteligência Artificial que não está sendo percebido. Está-se vendo apenas a ponta do iceberg.

O que está sendo apresentado, essa forma, quando utilizada como meio para outras construções, nos tira toda a possibilidade de avaliação dos seus efeitos. Haverá outros níveis de complexidade que não se pode imaginar. A sociedade se desenvolve por meio da técnica, evolui por meio da técnica, por isso os prognósticos do que irá ocorrer se mantém muito abertos.

Não é à toa que Cora Rónai, jornalista que trabalha com a área de tecnologia faz muitos anos, afirma: “Nunca vi nada igual ao ChatGPT.” [7]

Mas o que há de tão novo?

Pode-se citar duas grandes características apresentadas pela plataforma ChatGPT:

• A capacidade de entender o contexto de uma conversa e responder de forma coerente.

• A habilidade de gerar respostas variadas para perguntas e comentários.

Tudo isso em linguagem natural.

Os programadores e analistas da minha geração são privilegiados. Vimos como pequenos avanços isolados, com suas formas solitárias, de repente se juntaram e se transformaram em meio para que outras formas fossem criadas e assim por diante. O que é forma se transmuta em meio, num processo recursivo que permite recomeços de complexidade, até que haja uma quebra de paradigma que destrona tudo e o processo recomece.

Ao longo da história da humanidade, a técnica sempre trouxe transformações que exigiram adaptações dos indivíduos, das organizações e com muita dificuldade dos governos. Essas técnicas, aplicadas em contextos limitados, triscavam apenas uma parte da sociedade. 

Com a invenção do computador, essa tecnologia se espraia para diversos domínios das atividades humanas, afetando a vida da maioria dos indivíduos, das organizações e dos governos, criando o mundo da tecnologia da informação. São técnicas específicas que se transformam em meio para um mundo de outras técnicas.

 Não se deve esquecer, que subjaz em qualquer técnica uma estrutura rígida, inflexível.

A utilização generalizada do computador trouxe para as pessoas a necessidade de apreensão e de aprendizado de outra linguagem, uma outra forma dos indivíduos relacionarem-se com seus entornos, que não aquelas utilizadas tradicionalmente. Uma forma adicional e diferenciada de relacionamento com o mundo.

Essa nova linguagem “técnica”, que se altera constantemente, de forma rápida quando se considera o tempo que nossa linguagem natural leva para evoluir, traz dificuldades, principalmente para os indivíduos que se localizam nos extremos das faixas etárias: para os muito novos e para os mais velhos. Como os indivíduos podem resvalar para dentro de um mundo tecnológico se o acesso a eles é impedido por dificuldades de comunicação?

Apesar das facilidades oferecidas nos dispositivos de última geração, ainda assim há uma linguagem técnica, seja com ícones, menus, endereços, formas de indicar pesquisas…

Além dos excluídos, que ainda não dispõem dos dispositivos e do acesso deles à rede mundial de computadores, embora tenha havido avanços nessa direção, há os excluídos por conta da inadaptação a uma nova linguagem, que não a natural.

A técnica resolve os problemas da técnica. O modelo ChatGPT é um bom exemplo.

Agora já se pode dialogar com o computador, em um processo em que a máquina imita a forma como as pessoas escrevem e falam. As conversas ficam mais “naturais” e humanos podem interagir com as máquinas — com fórmulas matemáticas, com algoritmos —, como se do outro lado houvesse um ser humano. E isso não é qualquer coisa. Significa a inclusão dos excluídos, dos analfabetos do idioma técnico, em um mundo até então hostil para eles. Mas claro que isso é muito bom para todos que interagem com computadores.

Pela primeira vez a frase de Alan Turing, dita em 1946, torna-se realidade: “In 30 years, it will be as easy to ask a computer a question as to ask a person”, embora tenha-se passado 77 anos.

Perguntei o que Turing desejava dizer com essa frase na plataforma ChatGPT e a resposta foi a seguinte:

Essa frase foi atribuída a Alan Turing, um importante matemático e computacionista britânico do século XX. Ele fez a previsão de que em 30 anos, seria tão fácil perguntar a um computador como perguntar a uma pessoa.

Esta previsão foi feita em meados do século XX, quando a computação ainda estava em sua infância e as pessoas tinham pouca familiaridade com os computadores. Turing acreditava que a tecnologia da computação iria avançar a tal ponto que as pessoas poderiam interagir com os computadores de forma natural, como se estivessem conversando com outra pessoa.

Essa previsão é considerada visionária, já que ela antecipou o desenvolvimento da inteligência artificial e da tecnologia de reconhecimento de fala, que hoje permite a interação humano-computador de uma forma muito mais natural do que era possível décadas atrás.

Em resumo, a frase de Alan Turing sugere que ele acreditava que a tecnologia da computação iria avançar rapidamente e que as pessoas poderiam interagir com os computadores de forma tão natural quanto interagem entre si. [8]

Quem decide o que é inovação?

Ao final, nós é que selecionamos o que é inovação ou não. Não são as empresas que se infiltram em nossas vidas. Propostas “inovadoras” estabelecem-se, e transformam-se, quando as pessoas passam a utilizá-las.  É um processo evolutivo em que o ambiente seleciona a variação e há uma estabilização por um período.  Então, é muito difícil identificar, nos momentos em que as empresas fazem lançamentos ditos “inovadores”, se realmente o que elas propõem será do agrado dos indivíduos e se irá mudar seus comportamentos. Propostas maravilhosas podem ser desprezadas ou podem necessitar de muitos ajustes, muitas variações, até que sejam aceitas.

O futuro é sempre incerto e afirmações podem ser vazias e ficarem distantes da realidade que irá se impor.

É mais simples, de acordo com Luhmann, constatar as mudanças de estruturas em relação a um esquema de diferenciação do tipo antes/depois. [9] Então, só será possível avaliar minha afirmação em relação a esses novos algoritmos utilizados na plataforma ChatGPT, e outras plataformas semelhantes, daqui a algum tempo.

Mas certamente estamos diante de algo muito significativo, que representa um despertar para mudanças substanciais na sociedade.

Não se pode avaliar a extensão, mas se pode arriscar que será muito significativa. Essa técnica é uma forma que será utilizada como meio para novos produtos ou para o acesso facilitado dos indivíduos aos produtos existentes, que em essência podem ser iguais, mas serão acessados de uma “nova” maneira, que na verdade é velha, pois imita a linguagem natural e é assim que todos estão habituados. Haverá uma interação muito mais rica e natural entre seres humanos e máquinas. Não é à toa que há uma briga feroz de bilhões de dólares pelo domínio dessa “inovação”, principalmente pelas empresas que tem produtos de busca de informações.

Esses novos algoritmos representam o verdadeiro sentido de inovação

Quando surgiu a Google, que atualmente detém 93% da participação no mercado global de mecanismos de busca, de acordo com a empresa de análise StatCounter, [10] o mundo certamente mudou. Não se pode pensar como era a vida antes das facilidades oferecidas por uma plataforma de busca. As pessoas mudaram seus comportamentos. Essa plataforma, líder em pesquisas, transforma-se em auxiliar perfeita para que indivíduos desempenhem suas atividades com mais eficiência. Foi algo realmente inovador, caiu no gosto das pessoas e mudou comportamentos.

Mas percebe-se uma diferença importante entre consultar a plataforma ChatGPT e consultar a plataforma Google ou a plataforma Bing da Microsoft, [11] por exemplo. Da velha disputa entre a Microsoft e a Google, há a famosa piada que me ajuda a explicar o que desejo expressar:

— Por que o Bono parou de usar o Bing?

— Porque ele ainda não encontrou o que procura.

O modelo da Google é excelente, cumpre o que promete e a empresa tem aperfeiçoado constantemente sua plataforma. Mas, em alguns casos, uma pesquisa pode trazer milhares de ocorrências, embora nas últimas versões já se perceba mudança para melhor nesse sentido, em que um pequeno resumo inicial é apresentado. Uma vantagem dessas centenas ou milhares de resultados é que estão colocadas ali as referências e há um critério de prioridade, embora nem sempre funcione. O problema é que o usuário tem um trabalho adicional de ler e selecionar. Uma seleção de uma seleção.

O modelo ChatGPT [12] inova na forma de apresentação do resultado da pesquisa. A resposta é exatamente o que se deseja saber. Resposta especificada em um texto com início, meio e fim, bem estruturado. Uma verdadeira informação. Informação, no perfeito sentido do termo, é uma seleção, uma diminuição de complexidade. “Uma diferença que faz a diferença”. [13] O ChatGPT criou uma forma altamente competente de lidar com milhares ou milhões de textos, espalhados no mundo virtual. Percebe-se uma síntese excelente em poucos parágrafos entendíveis e coerentes. Qualidade nem sempre encontrada em humanos. Essa diferença faz uma diferença para quem a utiliza.

Essa nova abordagem traz mudanças significativas nas teorias do conhecimento e da informação e em muitas áreas do relacionamento humano. Afinal há uma imitação muito boa da linguagem natural.

Há um diálogo profícuo entre “sujeitos”, em que um deles é o computador. A diferença entre eles é que um deles não sabe que sabe.

Saber “tudo” sem saber que sabe - Quebra de paradigma: computadores não confiáveis

Desde minha infância, notícias envolvendo computadores sempre causaram frisson nas pessoas. As notícias, naquela época, eram veiculadas principalmente por meio da televisão e de rádios, jornais e revistas, pois eram os meios generalizados de difusão de informação existentes. Esses veículos não somente exploravam e se beneficiavam do sentimento das pessoas em relação aos computadores, como também reforçavam esse sentimento, num processo recursivo que fazia com que as pessoas procurassem mais notícias sobre o assunto.

No início as notícias eram sobre os cérebros eletrônicos, máquinas misteriosas só vistas no cinema, na televisão ou por foto. Algumas empresas tinham visitas guiadas onde pessoas passavam por salas de vidros para observação do computador. A notícia real, o fato, era temperado, mesclado, com predições e especulações sobre o futuro. Softwares e computadores rendiam muito para a imaginação daqueles que desejavam trazer o futuro para o presente. Alguns vendiam o futuro como desafiador e maravilhoso e outros como difícil e catastrófico.

IA é um termo genérico e abrangente. Quem se dedica a essa área tem como objetivo dotar os computadores de inteligência, seja lá o que isso signifique realmente; mas, principalmente da capacidade de aprender, assim como o ser humano e alguns outros animais. Uma das características mais nobres do ser humano é a capacidade de aprendizado; aprende muitas coisas genericamente. Criar computadores inteligentes e dotá-los da capacidade de aprendizado não é e não será simples.

Inteligência é um termo de difícil definição. Kevin Kelly afirma que nossa própria inteligência tem um entendimento muito pobre do que seja inteligência. [14] Há muito se estuda e se tenta definir o que realmente é inteligência ou ser inteligente.

Nesses novos tempos, quando os algoritmos de IA se popularizam, há de se entender que o computador, em alguns casos, nos remete à subjetividade. Decisões e sugestões dadas por eles podem ser questionadas. Grupos de observadores, que pensem diferente daqueles que foram a fonte para os dados utilizados na criação dos modelos de conhecimento podem questioná-las. Além disso, podem ocorrer novas situações diferenciadas que não estavam presentes nas bases de dados utilizadas para os modelos de conhecimento e o computador terá dúvidas quanto à resposta, ou até poderá selecionar uma resposta distante e inaceitável. Nessas situações o computador deverá ser ensinado: por quem? E, obviamente, decidirá no futuro tendenciosamente; decidirá de acordo com o mestre. Escolhas ideológicas ou preconceituosas de humanos que deram origem aos dados, nem sempre percebidas ou passíveis de comprovação, mesmo sem quaisquer intenções secundárias, serão reproduzidas pelas máquinas que aprendem com esses dados distorcidos.

Quanto mais dados, melhores serão os resultados do modelo preditivo, mas os modelos nunca serão “perfeitos”, pois espelham as imperfeições humanas. A imperfeição está espelhada, embutida nos dados; dados esses que serão a base para informações e para decisões futuras dos algoritmos de aprendizado de máquina.

Sobre o ChatGPT, Cora Rónai afirma que “A margem de acerto é fabulosa, há pouquíssimos erros de concordância, a linguagem flui bem (sobretudo em inglês), mas ainda falta alguma coisa ao conjunto — uma construção inesperada, um brilho, talvez até quem sabe, uma falha humana.” [15]

Necessita-se fazer as seguintes reflexões:

Os algoritmos realmente não são “criativos”. Eles tratam símbolos e não sentido. Não se pode esperar dos algoritmos soluções inovadoras.

Mas, não se pode afirmar que eles não espelham as imperfeições humanas. Os algoritmos se baseiam em dados e informações de humanos, portanto, estão ali, ainda que de forma subjacente, todas as nossas imperfeições.

Nesses novos tempos, máquinas com esses novos algoritmos têm comportamentos probabilísticos e não mais rígidos como antigamente. Sim, precisamos mudar um pouco nossa maneira de pensar: o computador já não é mais aquela máquina confiável de outrora. Ele pode errar, pois faz inferências a partir de dados, de milhões de dados que recebe. E pior, não sabe e não descobre que está errando ou aplicando decisões enviesadas. Ele não sabe o que sabe, mas também não o que não sabe.

Parafraseando Heidegger, não podemos afirmar que os novos computadores com algoritmos de IA simplesmente observam o mundo, eles são visão de mundo. [16]

 

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[1] CHATGPT. Disponível em: <https://chat.openai.com/chat>. Acesso em: fev. 2023.

[2] Como a inteligência artificial pode auxiliar nas contra-argumentações em recursos para instâncias superiores? Disponível em: <//facil.com.br/. Acesso em: fev. 2023.

[3] MIMS, Christopher. The AI Boom That Could Make Google and Microsoft Even More Powerful. Disponível em: <www.wsj.com/articles/. Acesso em: fev. 2023.

[4] LERMAN, Rachel.; TIKU, Nitasha. Microsoft launches search engine ‘infused with AI’. Disponível em: <www.washingtonpost.com. Acesso em: fev. 2023.

[5] MIMS, Christopher. The AI Boom That Could Make Google and Microsoft Even More Powerful.

[6] LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad; Traducción: Javier Torres Nafarrate bajo el cuidado conceptual de Darío Rodríguez Mansilla, y estilístico de Marco Ornelas Esquinca y de Rafael Mesa Iturbide. Ciudad de México: Herder, 2006, p. 412.

[7] RÓNAI, Cora. Nunca vi nada igual ao ChatGPT. Disponível em: <oglobo.globo.com/cultura. Acesso em: fev. 2023.

[8] CHATGPT. Disponível em: <chat.openai.com/chat. Acesso em: fev. 2023.

[9] LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas; tradução: Ana Cristina Arantes Nasser. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011,, p. 326-327.

[10] STERN, Joanna. I Tried Microsoft’s New AI-Powered Bing. Search Will Never Be the Same. Disponível em: <www.wsj.com/articles. Acesso em: fev. 2023.

[11] Em suas versões atuais, pois ambas já sinalizam mudanças em direção a utilização de modelos como o ChatGPT.

[12] Ao citar aqui o ChatGPT, me refiro a qualquer algoritmo dessa nova geração.

[13] Famosa frase de Gregory Bateson.

[14] KELLY, Kevin. How AI can bring on a second Industrial Revolution. Disponível em: <www.ted.com/talks/. Acesso em: out. 2020.

[15] RÓNAI, Cora. Nunca vi nada igual ao ChatGPT.

[16] HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia; tradução: Marco Antonio Casanova; revisão de tradução: Eurides Avance de Souza. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009,  p. 369.